XaviBlinded and Facundo Sanchez – a milking
O Bairro das Máquinas era um lugar onde o passado industrial da cidade ia para morrer, mas teimava em continuar respirando. Entre galpões silenciosos e trilhos de trem cobertos de mato, erguia-se o estúdio de **XaviBlinded**.
Não era um estúdio comum. Xavi, um homem que usava óculos escuros até de noite, havia perdido a visão física na adolescência, mas ganhara uma percepção sonora quase sobrenatural. Ele era um *sound designer* experimental. Seu trabalho era capturar o inaudível: o gemido do metal enferrujando sob o sol, o suspiro do vento através de uma janela quebrada, o eco de passos em corredores abandonados. Ele transformava esses sons em paisagens sonoras para instalações de arte e filmes de vanguarda. Seu estúdio era um labirinto de cabos, microfones de contato e alto-falantes, uma caverna onde a escuridão era sua tela e o som, sua tinta. Seu nome artístico, XaviBlinded, não era uma limitação, era uma declaração de identidade.
Do outro lado da rua de terra, em um galpão restaurado com enormes janelas de vidro, trabalhava **Facundo Sanchez**. Onde Xavi colecionava sombras e ruídos, Facundo colecionava luz. Era um fotógrafo de longa exposição, obcecado por capturar o rastro do tempo. Ele fotografava a mesma paisagem urbana cem vezes, em diferentes horas e estações, sobrepondo as imagens para criar fotografias únicas que mostravam dias inteiros em um único quadro. Seu espaço era inundado de luz natural, branco e arejado, um santuário da imagem pura. Para Facundo, o mundo era uma questão de foco, composição e o triunfo da luz sobre a escuridão.
Por meses, foram vizinhos ignorados. O silêncio profundo e interrompido por ruídos estranhos de Xavi era um mistério irritante para Facundo, que precisava de silêncio absoluto para ouvir o *click* perfeito de seu obturador. As explosões repentinas de som ambiente, os graves que faziam vibrar os vidros, eram intrusões no mundo perfeito e controlado de Facundo.
Um dia, a tensão estourou. Facundo estava no momento crucial de uma exposição de 8 horas, capturando a trajetória do sol sobre uma chaminé abandonada. Um fio de seu equipamento tocou em uma cerca metálica, criando um som agudo e prolongado.
Do estúdio de Xavi, surgiu um grito abafado. Minutos depois, Xavi apareceu à porta de Facundo, guiando-se com sua bengala, seu rosto uma máscara de frustração.
“São 2.347 Hertz!”, disse Xavi, apontando na direção geral de Facundo, sua voz carregada de uma fúria precisa. “Um som agudo, constante, que atravessa a minha parede e está arruinando a textura de um campo magnético gravado que eu estava isolando! Por oito horas!”
Facundo, protegendo sua câmera como um filhote, revidou. “O seu ‘campo magnético’ ontem parecia um tanque passando por aqui! Você acha que consegue focar uma lente com um terremoto de baixos frequentes?”
“Focar?”, Xavi riu, sem humor. “Eu não *foco*. Eu *sinto*. Você coleciona fantasmas de luz em um papel. Eu capturo a alma dos lugares antes que ela desapareça no silêncio.”
A frase pairou no ar entre eles. *A alma dos lugares*. Era exatamente isso que Facundo também perseguia, mas através de um sentido oposto.
Desafiado, Facundo pegou um fone de ouvido de reserva. “Me mostre. Me mostre essa ‘alma’ da chaminé.”
Com relutância, Xavi o levou ao seu estúdio. Em vez de escuridão, Facundo encontrou um mapa sonoro. Em alto-falantes posicionados estrategicamente, Xavi reproduziu a gravação da chaminé. Não era apenas o vento. Era o calor residual do tijolo contra o frio da noite (um leve estalido), o lento desgaste da argamassa (um pó caindo em frequência quase inaudível), o eco distante de um apito de trem de cinquenta anos atrás, que as pedras ainda guardavam. Era a história do objeto, contada em som.
Facundo ficou pasmo. Ele via a chaminé como uma forma contra o céu. Xavi a fazia *viver* no tempo.
“É… é lindo”, admitiu Facundo, sua raiva dissolvida em admiração.
Xavi ficou quieto por um momento. “Sua luz… ela muda conforme o dia?”
Claro que sim. Era a essência do seu trabalho.
Uma ideia, estranha e perfeita, nasceu naquele instante. Facundo propôs um pacto: ele faria uma série fotográfica de longuíssima exposição *dentro* do estúdio de Xavi, capturando os rastros de luz dos LEDs dos equipamentos, das telas, da pequena lâmpada de seu braile, durante uma sessão de trabalho completa. Uma “fotografia do processo auditivo”.
Em troca, Xavi criaria uma paisagem sonora baseada não no objeto fotografado por Facundo, mas no *processo* fotográfico. O som do obturador abrindo e fechando por horas, o zumbido do sensor da câmera aquecendo, o roçar das roupas de Facundo enquanto ele se movia no escuro.
O projeto os consumiu. Facundo passou noites no reino da escuridão de Xavi, aprendendo a “ver” com os ouvidos. Xavi, por sua vez, descobriu a beleza rítmica e quase musical dos sons do ofício de Facundo.
A obra final foi exibida na galeria do centro. Em uma sala escura, as fotografias de Facundo brilhavam: traços fantasmagóricos de luz verde, vermelha e azul dançando em fundo negro, eram os “retratos” das sessões de escuta de Xavi. E para vê-las, o público usava fones. Nos ouvidos, a trilha sonora de XaviBlinded não era música, mas uma sinfonia de clicks, zumbidos, sussurros e o profundo, quase tátil, silêncio que precede a criação. A luz de Facundo ganhara uma voz. A escuridão de Xavi ganhara um rosto.
No vernissage, os dois ficaram de lado. Facundo, de óculos escuros emprestados de Xavi, para experimentar a abertura sem o sentido da visão. Xavi, de mão leve no ombro de Facundo, guiando-o pelos sussurros e reações do público, que ele conseguia “ler” no ar.
Não precisavam mais falar. **XaviBlinded** e **Facundo Sanchez** tinham descoberto que a percepção é um espectro. Que a luz mais pura projeta uma sombra cheia de segredos, e que na escuridão mais profunda, há sempre uma frequência, um ruído, uma história esperando para ser capturada. Eles não eram mais vizinhos em guerra. Eram dois lados do mesmo sensor, finalmente em foco.




