Giuspel, Kay Tronx and the camaraman (part 2) – RFC

Num futuro distante, a Terra era uma sombra de seus antigos esplendores. As cidades, agora chamadas de **Cúpulas**, eram imponentes estruturas de metal e luz artificial, onde a natureza havia sido reduzida a meros hologramas de entretenimento. Toda a flora real fora erradicada por um vírus nanotecnológico chamado “A Ferrugem”, séculos atrás.
Na Cúpula-7, **Kay Tronx** era uma das mais brilhantes Engenheiras de Eco-Sistemas. Seu trabalho não era reviver a vida, mas sim manter as simulações de florestas e oceanos rodando perfeitamente para o bem-estar psicológico dos cidadãos. Ela era lógica, pragmática e acreditava piamente nos dados. Se os relatórios diziam que uma simulação de carvalho acalmava 87,3% dos observadores, ela otimizava aquele carvalho digital até a última linha de código. Mas, no silêncio de seu quarto, um vazio a consumia. Ela sentia saudade de algo que nunca conhecera: o cheiro de terra molhada de verdade.
No limite externo da Cúpula-7, numa zona de “descontaminação” abandonada, vivia **Giuspel**. Ninguém sabia sua idade ou origem real. Para os registros da Cúpula, ele era um “Catador de Anomalias”, um limpador de lixo tecnológico. Para os poucos que o conheciam, ele era um Guardião. Giuspel possuía um dom estranho: ele conseguia sentir, através das luvas remendadas, ecos de vida em objetos antigos. Um velho parafuso enferrujado podia trazer à sua mente a imagem da máquina que fazia parte, uma placa queimada ainda retinha o “calor” do uso. E ele colecionava esses ecos em pequenos frascos de vidro, que chamava de “Memórias de Tato”.
O destino deles se cruzou quando uma falha de energia nos setores periféricos da Cúpula apagou os hologramas de uma praça central, revelando, por baixo do piso de plastiço, uma rachadura. E dentro dela, algo impensável: um broto verde, tenro e real, rompendo uma camada de concreto.
Kay foi enviada para conter o “risco biológico”. Seu scanner confirmou o impossível: era vida orgânica, vegetal, imune à Ferrugem. O protocolo era claro: erradicar, isolar a área e reportar uma falha na descontaminação. Mas quando ela se aproximou com o extrator de materiais, uma voz áspera a fez parar.
“Ele não é um erro. É um eco que se lembrou de ser semente.”
Era Giuspel, observando de um portal de serviço. Ele não usava scanners. Estendia a mão sobre o broto, sem tocá-lo, e fechava os olhos. “Ele se chama Carvalho. E tem saudade do sol… o de verdade, não as lampadas da Cúpula.”
Kay ficou irritada. “Isso é um risco de contaminação inaceitável. E ‘saudade’ não é um parâmetro mensurável.” Mas seus olhos não saíam do verde vibrante da planta. Era um verde que nenhum holograma conseguia replicar. Era… desordenado. Imperfeito. Real.
Giuspel a encarou. “Você, Engenheira de Eco-Sistemas. Constrói florestas que não dão sombra, oceanos que não molham os pés. O que seu scanner diz sobre o vazio que você sente? É mensurável?”
A pergunta a atingiu como um choque. Ela baixou o extrator. O protocolo gritava em sua mente, mas um instinto mais profundo, adormecido por gerações, sussurrava mais alto.
Juntos, num ato de silêncio conspiratório, eles protegeram o broto. Kay usou seu conhecimento para desviar os drones de vigilância e criar uma câmara de ambiente controlado improvisada, que imitasse as condições pré-Ferrugem. Giuspel usou suas “Memórias de Tato” – tocando pedras antigas e metais enferrujados da zona – para tentar *sentir* o que a terra daquele exato local tinha sido, guiando Kay nos ajustes do solo sintético.
Era uma parceria absurda. A ciência de precisão de Kay e a sensibilidade ancestral de Giuspel. Ela ajustava os níveis de nitrogênio; ele sussurrava que “a terra aqui sentia frio à noite”. Ela regulava a luz; ele pedia para deixar um espectro mais “amarelo”, como o do fim de tarde que seus ecos lhe mostravam.
O broto não apenas sobreviveu. Ele cresceu. Em semanas, era uma muda. E um dia, sob a luz artificial ajustada, ele fez algo que nenhum holograma jamais fizera: soltou uma folha nova, que, ao se desprender meses depois, caiu no chão da câmara com um som seco e suave. Um som real.
Kay, pela primeira vez, chorou. Não por tristeza, mas porque finalmente *media* algo: o peso exato daquela folha em sua mão, a textura inconfundível, e o preenchimento avassalador do vazio em seu peito.
Giuspel sorriu, guardando a folha caída em um de seus frascos. “Este eco”, disse, “não é do passado. É do futuro.”
Eles não salvaram o mundo naquele dia. A Cúpula-7 continuou sua existência ordenada e estéril. Mas em um cantinho escuro, uma nova memória começava a ser tecida, não a partir de dados, mas de vida. Uma memória que, graças à união da precisão de **Kay Tronx** e da sensibilidade de **Giuspel**, talvez um dia pudesse florescer e, como o carvalho que agora criavam, ter raízes fortes o suficiente para rachar o concreto de uma era inteira.




